GILFRANCISCO [*]
O russo Mikhail Bakhtin (1895-1975) é considerado um dos grandes pensadores do século XX, apesar de ter tido uma carreira apagada na Rússia, seu nome não é sequer mencionado nos livros Cultura e Revolução Cultural, de Lenin e Literatura e Revolução, de Leon Trotsky, como a maioria dos intelectuais de sua geração, Bakhtin apoiou a Revolução de 1917. Muito embora não sendo um produto da Revolução, ele se formou na agitação dos anos imediatamente anteriores a essa grande revolta. Longe de ser considerado um marxista-leninista, Bakhtin fez de tudo para evitar o conflito com o Estado soviético, sem perder sua independência intelectual, mas era impossível suas ideias não irem em rota de colisão com o poder estatal. O interesse por sua obra no Ocidente não deriva de nenhuma dissidência política ou oposição aberta à autoridade soviética, mas o produto da atração de suas idéias. Bakhtin coloca no centro de suas preocupações a intricada relação que o homem mantém com o mundo através da linguagem e sustenta o firme propósito de compreender a literatura como um fenômeno estético totalmente articulado ao contexto cultural mais amplo. Bakhtin levou uma vida discreta, só conseguiu que suas obras realmente circulassem em seu país, ainda que de maneira lenta, depois de 1963. Sua obra traduzida para diversas línguas, alcançando grande repercussão no Ocidente, abrindo novas perspectivas aos estudos literários. Tudo que sabemos da sua vida pessoal foi “recentemente” revelada pelo casal de pesquisadores Katerina Clark e Michael Holquist, autores da biografia, Mikhail Bakhtin, 1984. O livro é o resultado das sucessivas pesquisas realizadas nos arquivos russos e em entrevistas, na União Soviética, com pessoas que conheceram Bakhtin pessoalmente ou possuíam informações sobre ele.
Mikhail Mikhailovitch Bakhtin nasceu no dia 16 de novembro de 1895 em Orel, pequena cidade ao Sul de Moscou. De origem aristocrática empobrecida, seu avô tinha fundado um banco de que seu pai dirigiu várias filiais. De pais cultos e liberais, deram aos filhos (ele tinha três irmãs e um irmão Nikolai, o mais velho) uma educação exigente e refinada. Aos nove anos, mudou-se a família para Vilna, capital da Lituânia (o maior e o mais populoso dos países bálticos) cidade em que conviviam muitas línguas (polonês, lituano, iídiche) diferentes grupos étnicos, diversas classes sociais. Aos quinze anos Bakhtin vai para Odessa, cidade também marcada pelo plurilinguismo, onde há uma forte influência judaica, e tem início seus estudos universitários. Após um ano, transfere-se para a Universidade de São Petersburgo, onde se matricula no Departamento de Letras Clássicas e se forma em História e Filologia. Foi na universidade que conheceu F. F. Zelinski, um classicista russo-polonês de reputação internacional, a cujas ideias, em certo sentido, pode-se dizer que Bakhtin recorreu durante toda a sua vida.
Formado em 1918, foi professor em Nevel, depois muda-se para Vitsbsk (1920), casa-se com Elena Aleksandrovna Okolovitch, sua fiel colaboradora durante meio século, trabalha como professor e participa de um pequeno circulo de intelectuais e de artistas entre os quais se encontram Marc Chagall e o musicólogo Sollertinsky, um jovem professor do Conservatório de Música local Valentin Nikolaévitch Volochínov, Pável Nikolaévitch Medviédiev, empregado de uma editora, o filósofo Matvei Issaévitch Kagan. O grupo lia Kant, Hegel, Santo Agostinho, Vladimir Soloviov e os livros de V. Ivánov e ficou conhecido sob o nome de “Círculo de Bakhtin”, foi responsável pelas ideias inovadoras, numa época de muita criatividade, particularmente nos domínios da arte e das ciências humanas. Segundo os estudiosos do pensamento bakhtiniano, Katerina e Michael “o círculo de Bakhtin não era, em nenhum sentido, uma organização fixa. Era apenas um grupo de amigos que adoravam encontrar-se e debater ideias e que tinham interesses filosóficos comuns (…). Normalmente, um dos participantes preparava uma breve sinopse ou resenha de uma obra filosófica e a lia para o círculo como base para discussão. O conjunto de tópicos tratados era amplo, incluindo Proust, Bergson, Freud e, acima de tudo questões de teologia. Às vezes um dos membros proferia uma série de conferências para os outros. A mais famosa delas foi um curso de oito conferências sobre a Crítia do Judto, de Kante, proferido por Bakhtin no início de 1923”. Nesta época publica o ensaio Arte e responsabilidade, em que explora as relações entre as formas artísticas e a vida social.
Em 1923, atacado de osteomielite crônica, que o levará, em 1938, a amputar uma perna (inflamação dos ossos e da medula óssea), passando a receber uma pequena pensão por invalidez,única renda regular por muitos anos. Impossibilitado de trabalhar regularmente, Bakhtin retornou a Petrogrado, sendo acompanhado pelos discípulos Volochínov e Medviédiev pelo desejo de ajudá-lo financeiramente e ao mesmo tempo divulgar suas idéias, e oferecem seus nomes a fim de tornar possível a publicação de suas primeiras obras. Volochínov e Medviédiev desapareceram nos anos trinta, durante os expurgos stalinistas. Em 1928 frequentou as reuniões do grupo religioso “A ressurreição” liderado por Guéorgui P. Fiedótov, que achava que “o marxismo revolucionário [era] uma seita apocalíptica judaico cristã”. Em 1929, Mikhail Bakhtin é preso e condenado a cinco anos de trabalhos forçados em um campo de concentração nas ilhas Solóvki, no Ártico. Graças a influência de amigos e intelectuais como Máximo Górki, Alexei Tolstói, e a generosidade de Anatóli Lunatchárski, Comissariado da Instrução Pública, que publica uma resenha favorável do livro sobre Dostoievski. Por causa da saúde precária sua internação é transformada em exílio na cidade de Kustanai, na fronteira do Cazaquistão com a Sibéria. Ai exerceu diversos trabalhos: guarda-livros, professor para empregados de fazendas coletivas, redator de verbetes de enciclopédia.
Em 1936 foi nomeado para o Instituto Pedagógico de Saransk e um ano depois instalou-se em Kimri, próximo a Moscou, onde viveu em completo obscurantismo até 1945, ensinando russo e alemão. Em 1940, apresenta no Instituto Gorki de Literatura Mundial de Moscou sua tese de doutoramento, intitulada Rabelais e a cultura popular. Devido à Guerra não consegue defendê-la, o que só acontecerá em 1946. Depois de intermináveis discussões da banca examinadora, não foi suficiente para lhe dar o título de doutor em 1952, a qual somente foi publicada em Moscou, no ano de 1965, com o título de A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento. De 1945 a 1961, data da sua aposentadoria, ensina mais uma vez em Saransk, terminando sua carreira na universidade local. A partir de 1963, Bakhitin começa a gozar de uma certa notoriedade, sobretudo após a reedição de sua obra sobre Dostoeievski (1963) e a tese sobre Rabelais. Em 1969 busca tratamento médico na região de Moscou, onde publicou alguns artigos nas revistas “Questões de Literatura” e “Contexto”. Morreu na capital Moscou em 1975, após uma longa enfermidade.
Marginalizado pelos círculos acadêmicos de prestígios, Bakhtin é autor de uma obra complexa e difícil de entendimento, não há nela uma teoria facilmente aplicável, nem uma metodologia acabada. No Brasil foram publicados importantes estudos sobre Bakhtin: Mikhail Bakhtin, Katerina Clark e Michael Holquist. São Paulo, Editora Perspectiva, 1998; Linguagem e diálogo: as idéias lingüísticas do Circulo de Bakhtin, Carlos Alberto Faraco. Curitiba, Criar Edições, 2003; Entre a poesia: Bakhtin e os formalistas russos, Cristovão Tezza. Rio de Janeiro, Editora Rocco, 2003; Introdução ao pensamento de Bakhtin, José Luiz Fiorin. São Paulo, Editora Ática, 2003; Bakhtin – Dialogismo e Polifonia, Beth Brait. Editora Contexto
Bakhtin no Brasil
Durante muitos anos o nome de Mikhail Bakhtin esteve silenciado na Rússia, exceto por especialistas em estudos eslavos e mesmo assim só por aqueles com especial interesse pela obra de Dostoievski. Hoje, entretanto, as obras de Bakhtin exercem considerável influência entre críticos literários e historiadores culturais, não só em sua terra natal, mas também na Europa e nos Estados Unidos. No Brasil foram publicados os seguintes livros: Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Editora Hucitec, 1979; Estética da Criação Verbal. São Paulo, Editora Martins Fontes, 1979; A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento (o contexto de François Rabelais). São Paulo, Editora Hucitec/Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1987; Questões de Literatura e de Estética(a teoria do romance). São Paulo, Editora Hucitec/UNESP, 1988; Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro, Editora Forense Universitária, 1981; O Freudismo: um esboço crítico. São Paulo, Editora Perspectiva, 2001.
Marxismo e Filosofia da Linguagem, publicado na Rússia em Leningrado, 1929-1930, em duas edições sucessivas e assinado por Valentin N. Voloshinov. Nenhum estudioso, nos tempos modernos, fez mais para revitalizar o estudo do que passou a ser chamado “as ciências humanas” – e particularmente a ciência da linguagem – do que Roman Jakobson (1895-1982). Ele é o autor do prefácio da edição francesa de 1977, e aponta Mikhail Bakhtin como seu verdadeiro autor. Não são claras as razões efetivas que teriam levado Bakhtin a escolher o nome de um dos seus amigos e discípulos para subscrever a autoria do livro. O fato é que o leitor encontrará em Marxismo e Filosofia da Linguagem, vários pontos comuns com Problemas da Poética de Dostoievski e mesmo com a sua obra sobre Rabelais (A farsa Medieval, Gilfrancisco. Tribuna da Bahia, 2. jan. 1989). Dividido em três partes, na primeiro e na segunda são tratadas questões de natureza técnica e metodológica, enquanto a terceiro é dedicada à análise de diferentes formas de discursos. Nessa obra, depois da crítica às duas mais importantes correntes da linguística de sua época, o objetivismo abstrato e o subjetivismo idealista, mostra-se a historicidade das formas linguísticas na situação real de comunicação. Isso é ilustrado com magnífico estudo das formas de citação do discurso alheio: o discurso direto, o indireto e o indireto livre. Portanto, nos anos trinta, Bakhtin já tratava o problema das relações entre linguagem e ideologia de forma a superar totalmente as limitações ortodoxas, opondo-se a Nicolai Iakovlevitch Marr (1864-1934), especialista em línguas caucasianas e autor da “teoria jafética”, que postula a monogênese da linguagem. Esta doutrina, que considera a linguagem uma superestrutura e um fenômeno de classe, preponderou na linguística soviética até que Stálin (1879-1953) a considerou antimarxista, em 1950.
Questões de Literatura e de Estética mostra a singularidade do romance, que, para ele, é a força mais significativa na história da consciência. O filósofo russo analisa a natureza do romance e sua evolução, do ponto de vista das atitudes em relação à linguagem e em relação ao espaço e ao tempo. Tanto nessa obra como em Problemas da Poética de Dostoievski, Bakhtin discorda das proposições do filósofo marxista húngaro Giorgy Luckács (1885-1971), autor de Teoria do Romance, que via o romance como um gênero que aparece associado à ascensão da burguesia, sendo, portanto, a epopeia de um mundo dessacralizado, o mundo burguês. A visão bakhtiniana do romance é radicalmente outra.
A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento, apresenta o conceito de carnavalização e analisa-se a obra de François Rabelais (1494-1553), a partir de seus laços profundos com a cultura popular e o carnaval. Considerado uma das maiores expressões do Renascimento, sua obra resumindo as aspirações da primeira metade do séc. XVI, conciliou a erudição com as tradições populares. Rabelais desenvolve em suas narrativas heroico-cômicas lições de um novo humanismo. Atrás do tom grotesco e da farsa, ele convida o leitor a pensar numa renovação do ideal filosófico à luz do pensamento antigo e faz uma profissão de fé na ciência e na natureza humana. Para Mikhail Bakhtin, Rabelais é o mais popular e o mais democrático dos grandes autores do Renascimento. Seguindo no rastro dessa tradição é que se desenvolve sua análise, debruçando-se sobre a multiplicidade das manifestações da cultura popular – ritos, espetáculos, festas, obras cômicas orais ou escritas.
Problemas da Poética de Dostoievski, livro em que analisa-se o romance polifônico (efeito obtido pela sobreposição de várias linhas melódicas, independentes mas harmonicamente relacionadas) de Dostoievski. Para isso, começa-se a delinear o conceito de carnavalização e estudam-se, entre outros temas, a palavra bivocal e a distinção entre prosa e poesia. Para Bakhtin, o autor de Crime e Castigo foi o criador de um novo gênero literário, o romance.
[*] É jornalista, pesquisador e professor. E-mail: gilfrancisco.santos@gmail.com
Deixar Um Comentário